segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Reflexões: Observe em torno

Sobre ovos e galinhas: indagações do cotidiano

     "Se você, amigo(a) leitor(a), parar um momento sequer e reparar nas pessoas que estão a sua volta, atitude que dificilmente temos tempo de tomar, poderá notar a falta de adequação parcial ou total à sua própria situação (na maioria escolhida por elas), algo como vestir uma roupa um pouco apertada: possível de usar mas incômoda. Se o reparar for acrescido pelo escutar, vai se surpreender com a quantidade de questionamentos levantados sobre variadas coisas e fatos, de modo desapercebido dos próprios autores das questões. São preliminares constantes e fáceis de notar se uma atenção devida for dirigida ao chamado cotidiano.

     Trata-se de uma marca indelével da espécie humana a falta de conformidade com o ambiente, com o pensamento alheio, com a condição dada e vivenciada. Não é de se estranhar a rebeldia de um cérebro resignado a suas idéias implicar, ou mesmo degladiar, com outras mentes que o façam oposição. Assim muitos intelectuais, artistas, escritores, políticos, filósofos e, por que não dizer, jovens e pessoas comuns, por não se acomodarem a uma “roupinha de lã da vovó” (metáfora malfeita para indicar a inércia iluminada de indivíduos deslumbrados com não sei quê), privaram-se do direito de respirarem o ar alienado da preguiça mental e retrucaram com profunda ênfase, através de indagações sobre tudo o que desconfiavam e, com tamanho magnetismo, provocava uma resposta ou pelo menos uma atenção.

     Não é à toa ser o cotidiano (algo aparentemente banal e desprezível) a fonte inesgotável de provocações por excelência. É nele que cada indivíduo é afrontado por dúvidas, problemas, desafetos e decepções. E seguramente, também o cotidiano é o palco de alegrias, de momentos inesquecíveis e de experiências únicas e intransponíveis. Portanto, nada melhor do que viver para indagar, e sendo o questionar o motor do homem na busca de dar sentido a sua existência, pode-se até inverter a ordem lógica da sentença: nada melhor do que indagar para viver.

     Ocorre, no entanto, um certo descaso por parte de muitos para com questões dessa natureza. Várias pessoas tapadinhas crêem ardentemente na ineficiência do pensar, julgam estupidez o fato de querer desvendar os porquês das coisas e interessam-se por isso somente se for um mote para piadas. A velha e gasta pergunta “Quem nasceu primeiro: o ovo ou a galinha?” é adotada como estandarte desse grupo de pessoas, distantes de qualquer grau de inteligência. E nem mesmo podem entender se essa pergunta, de modo geral simplista, pode conter no seu “código genético” algo de valor, não observado no humorismo ingênuo e desgastado.

     Pensar na qualidade duvidosa dessa pergunta não impede a percepção, por trás da sua fórmula lingüística, de três princípios de especulação: a origem dos seres (preocupação oriunda dos primórdios da história), a ordem de sua aparição e a possível influência de um para o outro, sem falar numa pretensa hierarquia de criaturas. Determinar qual entidade surgiu primeiro é admitir um caminho de compreensão da realidade e, sem determinar com exatidão matemática o correto, presumir uma suposição de tal nível é pôr-se numa problemática universal e atemporal. A origem e a classificação dos seres, bem como a significação deles existirem são perguntas e especulações feitas por filósofos desde o surgimento da Filosofia, e essas não abandonaram o filósofo jamais, ainda que algumas delas pareçam resolvidas para sempre.

     Talvez não se questione a verdade da maneira ideal (vencendo a aliciação do senso comum). O fato é admitir para si a força do cotidiano como matéria do pensamento, e desejar olhá-lo com curiosidade, sem fazer dele uma banalidade estéril."

Postado por Michel Valverde , 4 de dezembro de 2008, no http://daimonfilosofico.blogspot.com.br/search?updated-min=2008-01-01T00:00:00-02:00&updated-max=2009-01-01T00:00:00-02:00&max-results=19, publicado no Jornal Gazeta da Cidade, publicação de 02 a 07 de dezembro.

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